Isturdiinha veio à minha mente
reminiscências do quandonde morei em Timon, na velha Flores, numa casa, no cimo
da Rua 40, distante da “cidade”, separado por uma rua de areia e barro e pedra
e mato e areia e pedra e mato e barro. E se chovesse! Aff! Essa casa, que não
era muita engraçada, eu comprei com muita aula, afinal, Profe que não trabalha
não engole sapo! Não é mesmo, dona Cobra?
Essa estada em Timon foi ocupada
principalmente da vontade de vender aquela casa: terreno farto, 40 por 55; bons
ares; toda murada; com construção faltando somente acabamento; piso bruto.
Capitalismo também. Tempo de espera de venda do imóvel. Masporém, houve muita
produtividade nesse tempo. Isso tudo, por volta de 2000 a 2004, marromeno, que
as datas não as-gravo. Isso é mais coisa pro Stefano, o “Look at” (não por
acaso, o-consultei para lembrar o nome verdadeiro do personagem de que trata
esta crônica!). Eu lembro que, nesse período, em que mantive hospedado de
europeus a bandidos rasos, tive um período dando teto a um cantor e compositor
de Feira de Santana, na Bahia: Leão Negro ou, como lembrou o “Look at”, o
Eliseu, seu nome real (sem trocadilho kayano!).
Essa figura é o exemplo típico do
músico negro pé na estrada, que tem aquela espécie “Jam session” no roteiro de
viagem daqueles músicos das antigas, à la Robert Johnson e os blueseiros
estadunidenses. Coisa assim. Na música do Leão (“Judah”), há referências ao
trem, tão caro a esses bluesmen dantigamente. Leão era um andarilho. Queria
estar em tudo o que era de lugar. “Melhor não poderia estar”. Disso ele
partilhava. Taí uma coisa que aparece na sua música e que se confirma na sua
vida! É, pois o Leão era de uma surpresa atrás da outra, beirando (e caindo
dentro muitas vezes!) a irresponsabilidade. Que foi? Essa pergunta mesmo, que é
título de música e tudo, é um exemplo desse comportamento: ela é o
questionamento ao outro que estranhou de ele, Leão, estar fumando a erva
rastafári, a ganja, a kaya, daquele jamaicano que ele tanto admirava, Bob
Marley...
Assim como Ludwig Schwennhagen, que
escreveu seu único livro no Piauí, em 1928, Leão Negro somente conseguiu gravar
seu primeiro CD também aqui em Teresina, no Piauí, com muita luta e o
“mãetrocínio” de Clarice, sua amante (em todos os sentidos) timonense. Vi a
correria de Leão para gravar o CD somente com o apoio de mais dois músicos (não
sei se foi apenas um). Ele fez voz (principal e backing vocals), guitarra e
baixo. As músicas – acredito – já estavam bem definidas. Afinal, ele chegou a
nossa cidade já com alguma carreira percorrida por tantos lugares. Sei que,
quando esteve em minha casa, ele fazia shows por Teresina e Timon já cantando
essas suas composições. O CD saiu e Leão partiu para mais uma de suas viagens
(também sem trocadilho!). Foi a Fortaleza, andou por Belém, não sei bem. Muitos
lugares. Nem sei se ainda se encontra vivo – ouvi notícias de que sim. Por
isso, a chamada ao trocadilho tosheano: Dread or alive. Estão muito vivos ou
mortos de alegria os dreads leoninos? Alguém sabe do paradeiro desse músico?
“Negro assanhado, negro atrevido,
sem patrão e sem senhor”, como diz a música duns Malungos aqui, do Piauí. Ele
não sujou na entrada nem na saída, mas fez muita bobagem nessa sua estada por
estas paragens. Uma coisa é certa: deixou sua música conosco. E leiam que não
foi somente as gravadas em CD. Ficou comigo, Leão, a música que fizemos juntos,
naquele dia de puro misticismo negro. Dia em que ele me falou de Raul Bopp e de
que “queria conhecer algo desse cara”. Algo que ecoava em mim por haver gostado
de Bopp à primeira leitura! Mostrei a ele um livro do poeta antropofágico que
tinha em casa: “Mironga e Outros Poemas”, da Companhia das Letras. E não é que
ele, Leão, abriu o livro e bateu em cima do poema “Abisag” e, em vez de lê-lo,
foi logo cantando. Que mistério maravilhoso, a música junto à poesia. Um negro
que conhecia o poeta dos “poemas negros”. E mais: um poema com um sabor místico,
algo parecido com que o filho de Davi cantou no Cântico dos Cânticos: um
erotismo fino, mas picante (com trocadilho!).
Foi epifânica aquela cena. Foi como
um sopro, dum fôlego só a música fumaçou no ar: puro sândalo! Depois, alguns
ajustes, e refrão, e ritmos, e comungamos a música, que chegou viva à minha
mente e foi gravada como disco. Rígido ritmo em mente... Poema comovente, esse
pedido desafiador ao Rei doente... Abysag implorando por amor de carne:
“Meu
corpo é teu, Senhor, queres beijá-lo?
Por
que colheste, no horto em que eu vivia,
Meu
corpo em flor de tâmara macia,
Sem teres
forças para machucá-lo?”
Ah, Leão, espero que onde esteja,
você possa escutar ou ler esse meu texto, pois estas vibrações positivas hão de
cantar aquele seu sorriso, amigo, nos disco do divino.
Jah bless you!