Cunha e Silva Filho
Terceiro
livro de poesia do autor piauiense, antes precedido de dois outros, BardoAmar (Teresina:
Edição do Autor, 2003.), 2º lugar no Prêmio Torquato Neto de Poesia da
Fundação Cultural do Piauí, e Onde Humano (Teresina:
Editora Nova Aliança, 2009), os quais lhe renderiam visibilidade da
crítica em seu Estado natal, Das bocadas infernéticas (Guaratinguetá:
Editora Penalux, 2016.) surpreende o leitor, seja o especialista em
literatura, seja o leitor entusiasta de poesia, pelo arrojo de,
desta vez, ainda mais radicalizar seu perfil poético
de escrever poesia provocando perplexidades e
indagações pelo inusitado de versos ferinos que, no geral,
prestam tributo à glória da mordacidade de
Gregório de Matos, o conhecido “Boca do inferno” do
Barroco brasileiro.
Não
pense o leitor que sua radicalidade formal se restringe apenas à
poesia satírica por mera imitação de temas de Gregório de
Matos (1636-1696). Este lhe serve como referência principal e por
razões de admiração, porquanto outros autores da poesia ou fora da poesia
complementam uma espécie de linhagem de autores com os quais estabelece diálogos fecundos e por
afinidades de visão poética ou do mundo em que está visceralmente inserido.
Isso se
comprova explicitamente na primeira parte de título desabrido, Das
Bocadas, desse novo livro, através do “Envite aos vates assinalados a
chiste abaixo assinado”, e aqui despontam as citações, primeiro, a
preferida, do mencionado Gregório de Matos, seguido de Tomás Antonio Gonzaga
(1744-1810), Bernardo Guimarães (1825-1884), Luiz Gama (1830-1882), Juó
Bananére (1892-1933), Oswald de Andrade (1890-1954), do humorista Millôr
Fernandes (1923-2012), do cronista Luís Veríssimo, dos poetas Chacal e Glauco Mattoso, este também prosador e, se não me engano,
dicionarista de palavrões. No entanto, ao longo do livro, outras vozes, Mário
de Andrade (1893-1945), Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), Fernando Pessoa
(1888-1935), Da Costa e Silva (1885-1950), Bocage (1765-1805) se agregam
com suas ressonâncias, por vezes mal percebidas pelo leitor desatento.
O livro está dividido em duas partes: a primeira, já nomeada, Das Bocadas, e a segunda, Infernéticas. Neste último vocábulo, ainda lança mão de um neologismo formado, por processo
de aglutinação: inferno + internet + sufixo adjetival (-ica), por derivação
imprópria, ou seja, num só vocábulo alia dois processos de formação de palavra.
Acredito que essa tendência no poeta é recorrente e variada no
tocante ao prazer lúdico com a manipulação de natureza libertária com a língua.
Luiz Filho,
a meu ver, intencionalmente divide o título da obra em dois grandes
conjuntos de poemas, quiçá com a intenção, de parecer “quebrar” a
suposta ou aparente unidade temática do livro, numa atitude de
composição muito do seu estilo poético, que é desarticular para, em
seguida, articular. Tal expediente técnico nele aparece nas duas obras anteriores, já
citadas. No volume deste terceiro livro, ao todo são 100 poemas: 46, na primeira parte, e 54, na
segunda. Graficamente, ele apresenta na primeira parte todos os
poemas em forma de letra escrita à mão, ao passo que, na segunda, os
poemas aparecem em letras impressas normalmente. A opção pela forma gráfica
de escrita à mão já aparece no primeiro livro, BardoAmar, mas não a
emprega no segundo livro, Onde Humano. De qualquer sorte, os
aspectos grafemáticos percorrem os poemas do autor escritos até o
presente e, portanto, julgo constituírem parte significativa
da iconicidade inerente à poesia de Luiz Filho.
O que
ousaria afirmar é que esse poeta parece sentir o gosto de desviar-se
dos cânones do verso tradicional no uso do espaço da folha em branco.
Sua predisposição é no sentido de se afastar dos parâmetros convencionais, busca
a fuga a outros esquemas tanto na disposição de exibir na folha branca o
lado figurativo dos poemas quanto se deleita em acrescer aos poemas,
além dos títulos, à feição de alguns autores do passado, não
títulos breves, mas rubricas, no sentido de dramaturgia, de cunho
narrativo, expediente utilizados por ficcionistas e alguns poetas, inclusive
Gregório de Matos. Isso imprime, em alguns poemas, uma feição de
narrativa, de algum relato no espaço da poesia.
Esse desvio
de convenções datadas, no plano textual se repete como estratégia
discursiva, semântica, vocabular e frasal. Quer dizer, é nos planos
morfossintático-estilísticos que os desvios aos padrões mais se agudizam de tal
sorte que enunciado e enunciação sofrem rupturas, pondo em choque o leitor em
luta com o texto e sua opacidade, o texto e sua capacidade de desestabilizar
hábitos de formas menos complexas de enfrentar a leitura de poemas.
Em outros termos, o texto
passa a ser fonte de proposital “estranhamento,” amplamente adotado
pelo Modernismo brasileiro e por outros modos de fazer
poesia vanguardista (servindo de exemplo o poeta Oswald de Andrade
nessa fase de ruptura com os movimentos poéticos do passado), procedimento
operado pelo poeta que a crítica vê como um
traço primordial da modernidade poética: desautomatizar os
hábitos já consolidados do leitor que ainda procura na
poesia a emoção, o halo sentimental ou romântico, a
subjetividade simétrica ao lidar com os temas da tradição
literária - aliado à linearidade do verso tradicional anterior ao
Simbolismo.
Enquanto
em BardoAmar radicaliza, reitero, os recursos visuais e
grafemáticos, assim como as desarticulações e a imprevisibilidade da ordem
morfossintática, Onde Humano se comporta com menos ousadias
enquanto subversões dos recursos espácio-grafemáticos e, nesse aspecto, está
mais aproximado de Das Bocadas Infernéticas – cujo epicentro temático é
seu caráter satírico. Por outro lado, na tematização, o
repertório poético ganha mais um componente, que é o de trazer
sobretudo para a segunda parte do livro os temas e situações da linguagem das
mídias sociais e é nesse espaço do virtual que o livro se realiza com toda
a sua energia renovadora, podendo-se dizer que o universo da
comunicação pela internet se constitui em um dos temas da obra, como se
fora um personagem no campo ficcional.
Uma vez, o
autor me confidenciara que um dos objetivos de sua poesia
é divertir, o que me leva definir essa atitude artística como um trabalho
lúdico de fazer poesia em todas as suas possíveis modulações.
Entretanto, se efetivamente não se pode negar o fato de que em
grande parte de seus poemas podemos identificar essa dimensão do
ludismo, do jogo de palavras ou mesmo de composição de estruturas frasais,
há, por detrás dessa técnica ou estratégia, uma profunda seriedade
em tratar de questões sociais pelo viés de uma crítica
contra as mazelas, as injustiças e os destinos do
comportamento humano.
Em outras
palavras, a vertente profundamente social de seus versos acompanha
a sua produção desde a primeiro livro e só não chega à panfletagem porque,
acima do lado social crítico há a primazia do estético, da assimilação da
crítica social pelos mecanismos estéticos bem identificados pela elevada
importância que atribui ao gênero que cultiva. Reitero que, em primeiro
lugar, no poeta Luiz Filho existe visceralmente o
compromisso estético com a linguagem.
Releva um
pormenor que não se pode jamais deixar de levar em consideração
ao analisar a poesia de Luiz Filho: o funcionamento criterioso
da linguagem como forma de construção de seus poemas já
muito bem identificado pelos títulos, tanto na primeira parte do livro
quanto na segunda, nos quais a função metalinguística nele se
mantém sempre presente, o que me remete, em certo sentido, por
exemplo, à justaposição de palavras formando frases, ocorrente no poeta
norte-americano E. E. Cummings (1894-1962)). Neste sentido, cabe um exemplo de
Luiz Filho no poema de título #LiçãoDeLínguasEmLesbos, do qual citarei
apenas uma parte inicial:
#EmPênisSêmenDuro
#EEsseSeuPúbisEuchulo-O
#EBeijo-ONumLugarComum
#EEssesSeusLábiosEngulo-Os
( ...)
Com referência a modos
renovadores e experimentalistas de fatura poética, no Brasil, poderia pensar em
Manuel Bandeira (1886-1968) pela versatilidade de
transformar temas apóeticos em grandeza poética. E, em certos modos
de inventividade, em Da Costa e Silva, no poema “À margem de um pergaminho”
e no conjunto de poemas de título “Poemas à maneira de”.
Na segunda parte
do livro, o núcleo temático imbrica temas socais e situações da
experiência da comunicação virtual, cuja base é o mundo cibernético, que,
embora fazendo parte da vida do autor, é ao mesmo tempo
material para fazer dele objeto de crítica desabrida. Por isso, usa e
abusa da terminologia virtual. Há uma profusão de termos da
informática percorrendo praticamente a obra inteira. Ao acaso, veja-se o poema “Assalto
à mão teclada” (p.93) percorrendo toda a extensão da segunda parte. Esse vetor
tem que ser levado em alta conta na interpretação de sua poética tipificada
no livro:
Com a tela em
coberta toda
por um tecido de
códigos,
cobrindo o rosto de
propósito,
um hacker le-assaltou
agora,
há segundos atrás
num chat,
quando le-apontou
um mouse velho
e levou do bolso do
poeta o quanto
ele teclou texto em
sua conta.
- Copylantra!
Os temas atingem
uma multiplicidade de segmentos da sociedade, sobretudo urbana:
políticos, questão indígena, capitalismo, indivíduos desonestos,
meio-ambiente, sexo, amor virtual, miséria, fome, publicidade
enganosa, redes sociais, a poética, a linguagem etc. Em síntese, Luiz
Filho parece querer abarcar todos cantos do espaço sem fronteiras e os seus
versos cáusticos pululam aqui e ali numa acumulação de
nomes literários, de figuras universais, de lugares e de
situações múltiplas da existência.
Não é numa simples
resenha o lugar ideal de abarcar os diversos
segmentos linguísticos e temáticos do livro, todo ele ubíquo,
multifocal, literariamente atemporal, combinando modos de vida e de
pensar plurais, num exercício de composição poemática que, do solene e do
dessacralizado, da abundância escatológica sem arestas nem preconceitos,
sem receios de melindrar as hipocrisias das convenções sócias oportunistas
para uso externo, escolhe sua matéria poética feita do bem e do
mal, do feio do belo, da comédia e da tragédia.
Recolhendo a
diversidade da condição humana até onde for possível e mediante
recursos vários, até não se furtando ao trabalho de aproveitamento de tudo que,
em termos tradicionais, não é considerado digno de matéria poética, está
certo de que, no terreno da arte, não pode haver um discurso único, mas vias
multifárias de transformar a vida e tudo que possa haver no mundo em
arte, anulando as interdições como formas de liberdade de linguagem e
formas desafiadoras do lugar-comum.
Se sofremos
com o excesso de referências e da retórica no
estilo do poeta, levando-o a um hermetismo que pode afastar leitores
menos afeitos ao fazer poético da pós-modernidade, ganhamos igualmente em
termos de novas maneiras de manifestação poética da linguagem e pela
linguagem. Tanta consciência o autor tem dessa quebra de normatividade de elaboração
poética (trocadilhos, inversões sintagmáticas e verdadeiros torneios frasais
que se aproximam do nonsense, dos jogos engenhosos de
frases, provérbios etc ), que, no segundo livro, Onde Humano,
ele oferece ao leitor, no final do livro, “notas numeradas” e “notas avulsas”,
onde se elucidam alusões a autores, expressões linguísticas lexicais antigas e
modernas e regionalismos brasileiros. Já em Das Bocadas Infernéticas, ele
deixa a tarefa de garimpagem e de decifrações ao leitor avisado
ou desavisado.
É bem
provável que, mais tarde, passada essa fase experimentalista, o poeta,
como o fez um Ferreira Gullar na fase inicial de sua poesia, retome
o lado mais adequado ao lirismo da poesia do futuro, com maior
discursividade embora não se desfazendo de todo do traço da imprevisibilidade que
é fruir o poético ainda que atravessado pela apreensão da
não-totalidade do discurso poético de nossos dias, cada vez mais tão
pleno de referências alusivas - já há tempos profetizadas
pelo crítico I. A. Richards (1893-1979) - e, muitas vezes, impenetráveis.
Quiçá seja isso o que torna a poesia um gênero permanente, campo
privilegiado da sensibilidade e da beleza.
Um comentário:
Poeta com vasta pertinácia
De justificadas apologéticas
Obra de fôlego e audácia
Das Bocadas Infernéticas.
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