segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Os dentes mordem a memória em cenas teresinas



Conheci um cara – na verdade, um senhor de mais de meia idade, -pra- de seus cinquent’anos – que tinha uma singularidade notável (notável, aqui, passa pela constatação e pelo incrível). Eu, menino, àquela época, somente pude comprovar isso e aquelas conversas que rolavam nas rodas dos cara grande ou dos cara da turma (na fulerage!), quando vi-o-ouvi lá mesmo, no bairro Primavera, onde morava seo Mílton, essa singular pessoa. Vou chamar-ele pelo nome verdadeiro; é mais prático e menos chato. Acredito que aquele que lesse este texto iria estranhar, neste escrevê-lo inicialmente, se o-chamasse com um nome enigmático, que deixasse encoberto a verdadeira identidade dessa pessoa, pra não ser indiscreto (ou com medo de “um processo nas costas”?).
Essa era a ideia; esta: eu queria esconder a identidade do personagem para não causar nenhum tipo de constrangimento à família dele, já que seo Mílton não mais está entre nós. Porisso, queria me-referir a ele, neste texto, como Desmillôr. Sim, na minha ideia, essa estratégia seria um chiste, uma espécie de trocadilho com o esquesitúnico nome de um meu Guru, o do Méier, lá do Rio: o Milton. Ria: era pra levar em consideração o contrário do que aconteceu com o Millôr quando foi registrado em cartório seu nome. lendo? Então? Entanto, chamar-ele assim, de seo Milton, mantém mais o respeito e destaca melhor o fato; não o nome do cara. O processo, aqui, é outro; embora não seja assim tããããoo criativo ou desrespeitoso. Mas deixem os nomes, passemos à primeiríssima cena.
Poissim, a primeira vez que me-encontrei com seo Milton foi numa “pegadinha” que os cara da turma armaram pra mim: me-pediram pra perguntar as horas pra ele, que vinha chegando na quitanda do meu pai, seo Luizim. O bairro, em situação inicial de narrativa. Manhã, sem aula. A gente jogava bola? Talvez. Nem notei a fulerage; fiz cara de sério, pois era um homem que vinha vindo, um siô. Apesar de que ele usava somente uma bermuda, de chinelos, traje que é natural pros teresinenses, que o solo habitam de mais de quarenta graus. Bodim, mas no melhor português que dominava, perguntei: Que horas são, por favor? À resposta (Vai-te à merda, seo filha da “tuta”!), aquele estrondar de assonância: AH!AH!AH!AH!AH!AH!AH!AH! Ah, assim não vale! Seo Milton puto-das-calça comigo. Hem-hém, entendi tudo: ele não tinha dente algum na boca; sua fala – que onda! – era muito engraçada. Não que eu tenha entendido a frase de seo Milton me-xingando totalmente da forma como transcrevi acima, mas o “tuta” foi assim mesmo que ele pronunciou. A bilabial /pê/ não saía como devia. Que peça da vida: é muita comédia daqueles sons!
Manca: a dificuldade que ele tinha de articular fonemas, como o palatal /xê/ (exemplo: em “chuvendo”) ou os velares /quê/ e /guê/ (em “pataca” e “a”), por conta da ausência dos dentes, criava toda a piada: fonemas, como esses, na boca de seo Milton, eram transformados em outros sons e, inevitavelmente, som de gargalhadas. Taí  um fato de que os linguistas – deve-se-considerar também os “boquistas”? – não falam (pode ler que, pelos “estudos acadêmicos”, há um “preconceito necessário” de se-considerar somente a “boca completa de dentes”): a ausência dos dentes transforma um fonema em outro, e isso cria cada cena, cada som. É, mas esse papo de alguém optar por viver sem os dentes é algo muito trocadilhesco mesmo: é estridente  gargalhada por conta dessas cenas tantas. Algumas são muita comédia. Porisso, vamassistir o humorista, que risa (risos).
É, já escrevi em outro texto que a anedota do “doutor Gojoba” já virou piada nos palcos locais; ela deixou de ser domínio dum pedaço dum bairro e avançou para querer ser domínio duma cidade. Um texto que, de boca em ouvidos, se-espalhou pelos dedos no teclado em que pus a minha cabeça inquieta já o-é há mais de mil’horas. E mais: com a rede mundial de computadores, os textos são duplicados muito velozmente; com isso, o risco do anonimato; essa espécie de “domínio do público” sobre todos os títulos que forem espalhados pelas telas da rede. Quem copia os textos não quer saber de direitos autorais. Dá-lhe confusão de direitos e dinheiros! Seria coisa séria? Sim, mas o papo aqui é outro, já disse. Assino: as cenas cômicas de seo Milton não são minhas; somente a forma em que as-escrevo aqui, neste texto. Quem deve ser o profissional que contará esse papel cômico? Quem souber que suba o pano!

                                           CENA QUALQUER        
(Seo Milton, peruando o jogo de baralho, desmente Irãmílton, seu filho.)

SEO TÓIM CRUZ: Ô Milton, traz lá uns peixes pra gente, daqueles que o Irãmílton disse que pescou, hoje, no Poti.
SEO MILTON: O Iramilton foi “petá”, mas ele num sabe “petá”; ele num “peta” “pête dande”. Quando ele vai “petá", ele só “péta” “patata”. Só “péta” “Patata”!


Não é falta alguma de respeito, mas não havia quem não risse estando numa cena dessa, aqui, no bairro. Ó o que acontecia: seo Milton, quando falava, não considerava que estava pensando num fonema e que pronunciava outro. É algo assim como acontece com um motoqueiro que fala com você com o capacete na cabeça, pensando que está sendo reconhecido, já que ele o-conhece. Algo assim: seo Milton pensava na palavra, mas não executava certos fonemas, pela total ausência de dentes. Ele não observava essa mudança, manca! E foi isso que tornou uma outra cena que ele fez com Irãmílton algo o mais engraçado (a meu rir) que soube sobre ele.

Sem humor negro; estou memorando cenas de quando ele ainda andava entre nós, os primaverenses, mas a forma como as palavras “pescar” e “pataca” (pataca é – era? – um peixe miúdo que havia no rio Poti daquela época, quando ainda não havia níveis insuportáveis de coliformes fecais na água, entre a ponte da Frei Serafim e a do Primavera); poissim, a forma como essas palavras eram pronunciadas por seo Milton impunha todo o humor popular que há nessas cenas miúdas, dessa “arraia”, essa gentalha grande de pessoa. Coisa de mano da cidade, com muita graça. É risada mesmo! Isso é que é fulerage, nessa língua de terras contíguas: tupi, português, galego, espanhol, francês, latim. É, todos riam, nas rodas de baralho do bairro: no seo Antóim, no seo Miranda, no seo Zezé, no seo Tóim Tuz (“tradução” de seo Milton pro nome de seo Tóim Cruz < Antóim Cruz < Antônio Cruz).

Aqueles moradores que habitavam na parte da rua Professora Lídia Cunha e os que moravam nas quadras B e C do Conjunto Primavera já conheciam os coroas que formavam aquela trupe de baralho todas as noites. Onde fosse o jogo (as casas onde jogavam eram escolhidas alternadamente, conforme a conveniência) havia muita comédia entre aqueles velhos do Primavera. E nós, meninos, muitas vezes, só bicando a conversa deles, peruando o jogo. Com isso, essas pérolas descobertas, que eram faladas entre eles sem nenhum problema; só tiração de onda mesmo! Com os meninos, não vem, não: Seo filha da “tuta”!  Masporém, com mais velhos, claro, seo Milton não brigava tanto; mesmo porque eles eram muito maliciosos quando queriam fazer seo Milton falar ou porque a conversa acabava dando nesses sons engraçados. Quando um dos parceiros de baralho perguntou se a mulher de seo Mílton estava viajando, não há dúvidas de que foi a maior algazarra quando ele respondeu: É, mas ela disse que lá num bom, não, pois tá “tudendo” muito. “Tudendo”: imagina como os coroas interpretaram essa pronúncia. Lógico: ninguém pensou em “chuvendo”; só dispararam a metranca de riso, pros lados do satírico obsceno.

Grande figura, seo Milton. Pai, principalmente, de Arlindo (para o Paulim, irmão do Maribel, tinha de ser Arfeio!) e de Irãmílton, aquele daquela cena que julguei a mais hilária de todas; aquela de que falei anteriormente e de que, agoraqui, darei testemunho àquele que ler este texto. É muita comédia mesmo! O registro dessa cena foi passado a mim por intermédio da Eliana, uma das amigas das minhas irmãs. Com certeza, tem o toque do pessoal do seo Miranda, eles tinham uma tendência terrível à sátira.

A CENA MAIS CÔMICA
(Seo Milton ensinando o alfabeto a Irãmílton na sala da casa, na quadra B do Conjunto Primavera.)

SEO MILTON (Com muita paciência): Repete “tomido” [comigo]: Á.
IRÃMÍLTON: Á.
SEO MILTON: Bê.
IRÃMÍLTON: Bê.
SEO MILTON: Cê.
IRÃMÍLTON: Cê.
SEO MILTON: Dê.
IRÃMÍLTON: Dê.
SEO MILTON: É.
IRÃMÍLTON: É.
SEO MILTON: Éfe.
IRÃMÍLTON: Éfe.
SEO MILTON: Gê.
IRÃMÍLTON: Gê.
SEO MILTON: Adá.
IRÃMÍLTON: Adá.
SEO MILTON: Adá, não: Adá!
IRÃMÍLTON: Adá!
SEO MILTON (Um pouco impaciente): Adá, não: Adá!!!
IRÃMÍLTON: Adá!
SEO MILTON: (Bem mais impaciente): Adá, não, seo tôrra: Adá!!!!!!
IRÃMÍLTON: Adá, pai!
SEO MILTON (Dá um brogue no Irãmílton): Adá, não, tôrra, repete “tomido”: Adá!!!!!!!!!!!
IRÃMÍLTON: Adá, pai!!!!!!!!!! (Mais um brogue e seo Mílton sai zangado.)

Foi hilária mesmo essa lição de casa! Nossa, seo Milton novamente foi traído pela sensação de estar pronunciando o fonema correto estando a falar outro! E o mais irônico de tudo é que, na transformação dos fonemas que se-dava com seo Milton, no meio de tantos sons, ele ainda conseguia, sem dente algum na boca, pronunciar, na maioria das vezes, os fonemas linguodentais /tê/ e /dê/ e também os labiodentais, /fê/ e /vê/. Isso é que é um personagem pronto pra fazer parte, com essa cena acima, do anedotário loco-nacional. Taí, gente, é só espalhar. A graça se-deu assim. Fácil. Nas rodas do bairro.


(LUIZ FILHO DE OLIVEIRA. Deleituras Crônicas, 2011.)

2 comentários:

Daniel Andrade disse...

Muito massa! Essa história lembra-me os muitos causos cômicos da minha família hahahha

Luiz Filho de Oliveira disse...

É muita comédia, né, Daniel? Essa é do meu bairro...kkk