sexta-feira, 13 de maio de 2011

NOTAS DUM PIAGA DE CÁ DO PIAUÍ


Quando eu fui editar o meu segundo trabalho em poesia, Onde Humano (Teresina: Nova Aliança, 2009), achei importante fazer algumas notas de esclarecimento acerca de determinados termos e expressões que apareceriam nos poemas desse livro. Era justo, pois muitos dos que fossem lê-lo, não versados em piauiês, nordestinês ou sertanês, poderiam não entender certos vestígios dos falares que incorporei em minha língua.


Pensei: eles não vão ter a mesma intimidade que tive ao ler os autores que compunham a “Literatura do Norte”, como escreveu Tobias Barreto acerca dos livros de cultura nordestina, daqueles com sotaque da terrinha. Tá lendo? Esse “diminutivo emotivo” é coisa de nordestino mais que todos, do que tudo de brasileiro; esse falar que faz sentido, por exemplo, no texto de Francisco Gil Castelo-Branco, Ataliba, o Vaqueiro. Nessa obra (a primeira que trata do tema “seca” na literatura brasileira), o prosador piauiense demonstra claramente a sua preocupação em descrever o falar do sertão Piauí do século XIX e em deixar claro o significado de palavras ou expressões regionais que utilizava em sua prosa; afinal, estava ele escrevendo no Rio de Janeiro de 1878, no jornal Diário de Notícias, para um público diverso, leitores de folhetim que desconheciam o falar de sua “terra de piagas”. Não é de se-estranhar, portanto, que ele dê uma explicação dicionarizada a alguns termos do falar do sertão piauiense utilizados no seu texto, sobretudo, aos que dizem respeito à atividade do “herói do sertão”, o vaqueiro (não é Jerônimo; é Ataliba!): perneira, guarda-peito, gibão, , febre malina, cachingando, dentre tantos regionalismos; brasileiríssimos!


Continuei pensando: esses possíveis leitores também não iriam ter um idílio com os idiotismos do sertão brasileiro (do Norte ou Centro-Norte), como eu tive ao ler o famigerado Grande Sertão: Veredas, essa prosa maravilhosa do seo João. Ah, viver escrevendo é mesmo algo muito perigoso! Pensei terminando: os meus leitores que não forem dessas “quadradezas” não vão-se-sentir em casa, ao provarem do hem-hém, do de-nelson, do vixe, do bodim, do Lá no Piauí ou mesmo dos sentidos que podem ser explorados a partir da etimologia do nome deste estado: Piauí.


Foi justo; eu fiz: pus umas tantas notas no livro, as quais me-deram muito trabalho para defini-las. Porém, de todas elas, aqui, neste sítio, gostaria de me-reportar-me-repetindo a duas delas somente. A primeira é aquela em que me-refiro à expressão Lá no Piauí, que, gostem ou não os piauienses, remete às origens deste estado, à “terra de gado” ou à “Fazenda Piauí”, como escreve o Aírton Sampaio (autor daqui do Piauí). A outra nota é a que implica a explicação sobre a origem da palavra Piauí, de sua etimologia. Para início desta conversa-escrito, vou começar por esta última, porquanto a mais necessária; porisso, a primeira. Na referência a essa nota, faço menção ao que escreveu o douto professor de História e de Filologia Ludwig Schwennhagen, membro da Sociedade de Geografia Comercial de Viena, Áustria, em seu livro Fenícios no Brasil: Antiga História do Brasil, de 1100 a.C. a 1500 d.C., publicado, primeiro, pela Imprensa Oficial do Piauí, em 1928, e em segunda (1970), terceira (1976) e quarta (1986) edições, pela Livraria Editora Cátedra, do Rio de Janeiro, com apresentação e notas de Moacir C. Lopes.  


Esta nota aqui, portanto, é importante, porque (notem!), desde que me-conheço-por-gente, eu já ouvia a explicação de que o nome Piauí significava “terra de piau”. E leiam que eu ainda não sabia desta significação de “rios dos piaus ou rio dos peixes de pele manchada”, que ensinou o professor A. Tito Filho nas notas que escreveu para a reedição da obra Cronologia Histórica do Estado do Piauí, de Francisco Augusto Pereira da Costa, em  1974, no Rio de Janeiro, pela Editora Artenova. É, muitos rios; então, muita água rolava. Assim, o peixe era raiz também. Não está aí o nosso emepebelíssimo instrumentista Renato Piau para tocar no assunto? Quantos conterrâneos ainda não no-fazem como ele, grafam (e garfam!) o peixe para dar a isca (a pista!) de que são piauienses?


Tal significação ainda hoje é propagada em cadeiras (de madeira, pois o C... é De Ferro!) de escolas desta minha terra quentíssima. Isso eu li no próprio professor e filólogo A. Tito Filho, como o-escrevi acima, nas notas que esse estudioso piauiense fez à excelente obra de Francisco Augusto Pereira da Costa, historiador pernambucano que residiu no Piauí quando exerceu cargo público no governo. E notem que, na primeira edição da Cronologia, como já o-constatara Schwennhagen em 1928, Pereira da Costa cita documentos do Estado, dos séculos XVII e XVIII, nos quais aparecem escritas as palavras que eram utilizadas para nomear Piauí. Vamos ler o que escreveu (a ótica é dele!) o lente austríaco acerca da etimologia dessa palavra:


“A chave para compreender a fundação e significação das ‘Sete Cidades’ dá-nos o antigo nome de Piauhy, que era ‘Piaguí’. Nos documentos históricos que juntou F. A. Pereira da Costa na sua excelente ‘Cronologia’, encontramos as formas: Piaguí, Piaguhy, Piagoy e Piagohi, mas nunca Piauhy [observem que, em 1928, o nome do Estado ainda era escrito assim!], que apareceu pela primeira vez em 1739. Somente nos primeiros séculos do Império foi adotada, como nome oficial da província, a grafia Piauhy, e ignorantes explicam esse nome como ‘rio de peixe piau’.


“Piaguí não pode ter outro significado do que ‘Casa (...), terra dos piagas’, a terminação i, na língua tupi, indica o ‘locativo’, como em latim, no grego e nas línguas pelasgas. As letras i e y significam no tupi ‘água’ ou ‘riacho’, na posição de prefixo, como em igara, igarapé, Ipiranga, Icatu etc. Existem exceções dessa regra; mas ‘Piaguí’ não é uma tal” (Rio de Janeiro: Editora Cátedra, 1986, p.103.).

 

Desconjuro! Vixe, que weltanschaaung, Schwennhagen! É muita mundivisão junta numa significação, aparentemente, tão simples; o que mostra toda a “catigoria” desse historiador tão ignorado pela comunidade científica desta pátria que não no-pariu, e ainda mais deste estado! Mas essa é uma questão de que tratarei somente adiante; agoraqui, o que quero escrever, primeiro, é que essas referências ao Piauí, como Piaguí, Piaguhy, Piagoy e Piagohi, Schwennhagen leu no livro de Pereira da Costa em sua primeira versão, a de 1909, já que esse intelectual austríaco residiu em Teresina no final da década de 1920. Na edição da Cronologia que tenho às mãos, a de 1974, da Editora Artenova, pude constatar a presença de Piaguí, Piagohy, Piaguhy e Piaugui; portanto, não aparecem, nessa segunda edição do livro de Pereira da Costa, duas nomeações citadas pelo austríaco (Piagoy e Piagohi), e ainda são acrescidas duas outras (Piagohy e Piaugui) à lista toda. Contudo, essa barafunda não afunda a observação de Schwennhagen de que “o antigo nome de Piauhy era Piaguí”; ao contrário, reforça-a mais ainda.


Será que A. Tito Filho ignorava mesmo essa explicação de Schwennhagen ou quis somente sustentar a sua hipótese (muito distinta da do austríaco)? Por que ele não levou em consideração as palavras citadas nos documentos apontados por Pereira da Costa, já que elas estão presentes na edição, publicada sob os auspícios do Estado do Piauí, em que, nela, A. Tito, trabalhou em 1974? Quem morrer saberá, porque quem vive este texto, como eu, vivo, (data venia: datas vão!) discorda da versão do mestre piauiense. E o-faço não somente pelos argumentos que utiliza em seu livro Ludwig Schwennhagen (o que já seria suficiente, a meu escrever, ler e ver), mastambém pelo que escreve o próprio A. Tito Filho em uma das notas da edição de 1974; senão, leiamos:


“Bugyja Brito trata exaustivamente do y em palavras tupis, quando passaram ao português. O y representava o som gutural de certas palavras. Foi o caso de Piauí: ‘Presenciei – diz ele – no interior do Estado do Piauí, não faz muitos anos, em zonas de pleno sertão, indivíduos segregados em virtude da falta de intercâmbio com a capital e com outros municípios mais florescentes, manterem a pronúncia da palavra Piauí como se fosse um som entre Piaurü e Piaugü, o que significa que, quando se grafou a palavra Piauhy, isto é, quem a fez, primitivamente, escreveu-a com h e y (há documentos em que apareceram as formas Piaguy e Piauguhy) a fim de que fosse traduzido um som equivalente. Um h aspirado junto a um y daria a pronúncia que foi então usada e que é a mesma que nos pareceu, naquela oportunidade, ter-se mantido nas zonas entre indivíduos remanescentes de antigos silvícolas” (Rio de Janeiro: Editora Artenova, 1974, p.58.).


Poisbem, não resta dúvida de que essa raiz piag- faz parte da origem do nome hoje escrito Piauí, pois não são poucos os registros dela em documentos oficiais do Estado, dos séculos XVII e XVIII. A significação de “terra, casa de piagas” é, portanto, a mais plausível porque, se levarmos em consideração outros cronistas da história brasileira, leremos que o próprio padre José de Anchieta fora chamado, pelos nativos brasileiros do século XVI, de o “grande piahy”, ou seja, o grande piaga, o grande sacerdote; o que confere ao nome Piaguí essa denotação relativa a “piaga”. Não importa se metaplasmos incansáveis alteraram a grafia do topônimo “Piauí”; a origem dá-nos “piaga”, é fato, escrito. Os argumentos históricos e linguísticos listados por Schwennhagen são contundentes, atestam isto: essa significação é legítima. Resta saber de onde vêm as fontes de A. Tito Filho, para compará-las às do austríaco, apois.


Porfim, a segunda nota de que gostaria de escrever, a qual, aqui, se-torna a última, é aquela em que trato de um verso muito conhecido Brasil afora quando, ainda hoje, deve-se fazer uma referência ao Piauí. Não lembram ou não leram? Até o Oswald o-pôs na capa da primeira edição do seu Primeiro Caderno do Aluno de Poesia Oswald de Andrade. É uma redondilha menor: no Piauí. Esse verso, mesmo em tempos de infernet, continua sendo lembrado por muitas pessoas de outros estados quando o papo é o Piauí. Não é para menos, esse pentassílabo faz parte de uma quadrinha declamada pelo vaqueiro Mateus, (“O meu boi morreu./ Que será de mim?/ Manda buscar outro/ Lá no Piauí.”), que o historiador pernambucano Pereira Costa afirma estar presente num auto de Natal pernambucano, um cavalo-marinho, de fins do século XVII, ao tempo da colonização do Piauí. Para Sílvio Romero (leia a postagem anterior a esta neste mesmo sítio; nela, há mais detalhes), no seu livro Cantos Populares do Brasil, esse cavalo-marinho é do final do século XVIII.


Datas a parte das notas, o texto colhido por Sílvio Romero ou aquele a que se referia em suas pesquisas Pereira da Costa, é, certamente, prova cabal para que se-evite assertivas completamente tortas, sem rumo, acerca dessa quadrinha, como as que li em um livro daqui do Piauí (não sei se era um volume da UBE-PI; parece que sim, mas não me perguntem sobre os dados catalográficos desse livro, que eu me-desfiz dele) ou para que não cante a música acrescentando a expressão “Ó, maninha!” (que nem é um pentassílabo!) antes do último verso, como a maioria das gentes faz hoje. Isso, inclusive, transforma a estrofe numa quintilha: “O meu boi morreu./ Que será de mim?/ Manda buscar outro,/ Ó maninha,/ Lá no Piauí!”. Essa é a versão que é difundida na internet em qualquer sitiozinho de música ou mesmo de qualquer bobagem (há verdadeiros absurdos; quanta desinformação!). Ela também foi reproduzida numa obra daqui, Coisas Piauienses na Visão Cabocla, de Luiz Rocha, publicado em Teresina, em 1995, pela Fundação Municipal de Cultura Monsenhor Chaves! Ninguém sabia desse equívoco? Quem sabe! O que eu sei é que é esse o modo de cantar que está presente, hoje, na memória do povo, no folclore popular; o que eu não sei é se esse modo de cantar foi difundido a partir do uso dessa “quadrinha” num musical do teatro de revista carioca, da primeira metade do século XX. Não sei; daí, talvez essa popularidade pelo Brasil afora.



Tudo isso são hipóteses; como a que eu construí acerca da explicação que registrou a historiadora (sim, lembro-me que era uma mulher) no livro a que me-referi acima. É o seguinte: ela escreveu, no seu texto, que a quadrinha foi criada a partir de um fato ocorrido na Câmara Federal, quando a capital do Brasil ainda era o Rio de Janeiro. É cinematograficamente hilária a cena: um cearense (lá vem a piada!), estando deputado federal pelo Piauí, ao receber, em pleno plenário (vazio?),  uma ligação dando conta de que seu boi predileto, o Mimoso (?), morrera, diz os famosos versos: “O meu boi morreu./ Que será de mim?” (não lembro se havia os dois versos finais). Como escrevi, eu não tenho mais esse livro, mas acredito que seja isso mesmo que estava escrito nele. Se estiver equivocado, me-corrijam.


Se houver outro sentido, não no-sei. Ainda bem que fui ter, nos livros, com F. A. Pereira da Costa, Ludwig Schwennhagen e Sílvio Romero; senão estaria ignorante da história dessas versões, informações dignas destas notas. Hem-hém, menino. Eu quero que saibam que elas existem, para que todos tomem o seu assento quanto ao significado do nome deste sítio. Porisso, daqui, repito, perito, aos Piagas Filhos:


O meu boi vivo;

Que serão pra mim!

Manda buscar todos,

Cá pro Piauí!