quinta-feira, 26 de maio de 2016

LUIZ FILHO DE OLIVEIRA: POESIA, SÁTIRA E OS ENIGMAS DA LINGUAGEM


Cunha e Silva Filho



       Terceiro livro de poesia do autor piauiense, antes precedido de dois outros, BardoAmar (Teresina: Edição do Autor, 2003.), 2º lugar no Prêmio Torquato Neto de Poesia da Fundação Cultural do Piauí, e Onde Humano (Teresina: Editora Nova Aliança, 2009), os quais lhe renderiam visibilidade da crítica em seu Estado natal, Das bocadas infernéticas (Guaratinguetá: Editora Penalux, 2016.) surpreende o leitor, seja o especialista em literatura, seja o leitor entusiasta de poesia, pelo arrojo de, desta vez, ainda mais radicalizar seu perfil  poético  de escrever poesia  provocando  perplexidades  e indagações  pelo inusitado de versos  ferinos que, no geral,  prestam  tributo à glória  da  mordacidade de Gregório de Matos,  o  conhecido  “Boca do inferno”  do Barroco brasileiro.
     Não pense o leitor que sua radicalidade formal se restringe apenas à poesia satírica por mera imitação de temas de Gregório de Matos (1636-1696). Este lhe serve como referência principal e por razões de admiração, porquanto outros autores da poesia ou fora da poesia complementam uma espécie de linhagem de autores com os quais estabelece diálogos fecundos e por afinidades de visão poética ou do mundo em que está visceralmente inserido.
    Isso se comprova  explicitamente na primeira parte de título desabrido, Das Bocadas, desse novo livro, através do “Envite aos vates assinalados a chiste abaixo assinado”, e aqui despontam as citações, primeiro,  a preferida, do mencionado Gregório de Matos, seguido de Tomás Antonio Gonzaga (1744-1810), Bernardo Guimarães (1825-1884), Luiz Gama (1830-1882), Juó Bananére (1892-1933), Oswald de Andrade (1890-1954), do humorista Millôr Fernandes (1923-2012), do cronista Luís Veríssimo, dos poetas Chacal e Glauco Mattoso, este também  prosador e, se não me engano,  dicionarista de palavrões. No entanto, ao longo do livro, outras vozes, Mário de Andrade (1893-1945), Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), Fernando Pessoa (1888-1935), Da Costa e Silva (1885-1950), Bocage (1765-1805) se agregam com suas ressonâncias, por vezes mal percebidas pelo leitor desatento.
   O livro está dividido em duas partes: a primeira, já nomeada, Das Bocadas, e a segunda, Infernéticas. Neste último vocábulo, ainda lança mão de um neologismo formado, por processo de aglutinação: inferno + internet + sufixo adjetival (-ica), por derivação imprópria, ou seja, num só vocábulo alia dois processos de formação de palavra. Acredito que essa tendência no poeta é recorrente e variada no tocante ao prazer lúdico com a manipulação de natureza libertária com a língua.
     Luiz Filho, a meu ver, intencionalmente divide o título da obra em dois grandes conjuntos de poemas, quiçá com a intenção, de parecer “quebrar” a suposta ou aparente unidade temática do livro, numa atitude de composição muito do seu estilo poético, que é desarticular para, em seguida, articular. Tal expediente técnico nele aparece nas duas obras anteriores, já citadas. No volume deste terceiro livro, ao todo são 100 poemas: 46, na primeira parte, e 54, na segunda. Graficamente, ele apresenta na primeira parte todos os poemas em forma de letra escrita à mão, ao passo que, na segunda, os poemas aparecem em letras impressas normalmente. A opção pela forma gráfica de escrita à mão já aparece no primeiro livro, BardoAmar, mas não a emprega no segundo livro, Onde Humano. De qualquer sorte, os aspectos grafemáticos percorrem os poemas do autor escritos até o presente e, portanto, julgo constituírem parte significativa da iconicidade inerente à poesia de Luiz Filho.
    O que ousaria afirmar é que esse poeta parece sentir o gosto de desviar-se dos cânones do verso tradicional no uso do espaço da folha em branco. Sua predisposição é no sentido de se afastar dos parâmetros convencionais, busca a fuga a outros esquemas tanto na disposição de exibir na folha branca o lado figurativo dos poemas quanto se deleita em acrescer aos poemas, além dos títulos, à feição de alguns autores do passado, não títulos breves, mas rubricas, no sentido de dramaturgia, de cunho narrativo, expediente utilizados por ficcionistas e alguns poetas, inclusive Gregório de Matos. Isso imprime, em alguns poemas, uma feição de narrativa, de algum relato no espaço da poesia.
    Esse desvio de convenções datadas, no plano   textual se repete como estratégia discursiva, semântica, vocabular e frasal. Quer dizer, é nos planos morfossintático-estilísticos que os desvios aos padrões mais se agudizam de tal sorte que enunciado e enunciação sofrem rupturas, pondo em choque o leitor em luta com o texto e sua opacidade, o texto e sua capacidade de desestabilizar hábitos de formas menos complexas de enfrentar a leitura de poemas.
  Em outros termos, o texto passa a ser fonte de proposital “estranhamento,” amplamente adotado  pelo  Modernismo  brasileiro e por outros  modos de fazer  poesia  vanguardista (servindo de exemplo  o poeta Oswald de Andrade nessa fase de ruptura com os movimentos poéticos do passado), procedimento  operado  pelo  poeta que  a crítica   vê como um  traço  primordial  da modernidade  poética: desautomatizar os hábitos   já consolidados  do leitor que ainda procura  na poesia a emoção,  o halo sentimental  ou romântico, a subjetividade  simétrica ao lidar com os temas da tradição literária - aliado à linearidade do verso tradicional anterior ao  Simbolismo. 
    Enquanto em BardoAmar radicaliza, reitero, os recursos visuais e grafemáticos, assim como as desarticulações e a imprevisibilidade da ordem morfossintática, Onde Humano se comporta com menos ousadias enquanto subversões dos recursos espácio-grafemáticos e, nesse aspecto, está mais aproximado de Das Bocadas Infernéticas – cujo epicentro temático é seu caráter satírico. Por outro lado, na tematização, o repertório poético ganha mais um componente, que é o de trazer sobretudo para a segunda parte do livro os temas e situações da linguagem das mídias sociais e é nesse espaço do virtual que o livro se realiza com toda a sua energia renovadora, podendo-se dizer que o universo da comunicação pela internet se constitui em um dos temas da obra, como se fora um personagem no campo ficcional.
    Uma vez, o autor me confidenciara que um dos objetivos de sua   poesia é divertir, o que me leva definir essa atitude artística como um trabalho lúdico de fazer poesia em todas as suas possíveis modulações. Entretanto, se efetivamente não se pode negar o fato de que em grande parte de seus poemas podemos identificar essa dimensão do ludismo, do jogo de palavras ou mesmo de composição de estruturas frasais, há, por detrás dessa técnica ou estratégia, uma profunda    seriedade em tratar de questões sociais pelo viés de uma crítica   contra   as mazelas, as injustiças e os destinos do comportamento humano.
    Em outras palavras, a vertente profundamente social de seus versos acompanha a sua produção desde a primeiro livro e só não chega à panfletagem   porque, acima do lado social crítico há a primazia do estético, da assimilação da crítica social pelos mecanismos estéticos bem identificados pela elevada importância que atribui ao gênero que cultiva.  Reitero que, em primeiro lugar, no poeta Luiz Filho existe visceralmente o compromisso estético com a linguagem.
   Releva um  pormenor  que não se pode jamais  deixar de levar em consideração ao  analisar  a poesia de Luiz Filho: o funcionamento criterioso  da linguagem  como forma  de  construção de seus poemas  já muito bem  identificado pelos títulos, tanto na primeira parte do livro quanto na segunda, nos quais  a função metalinguística   nele    se mantém  sempre  presente, o que me remete, em certo sentido, por exemplo, à justaposição de palavras formando frases, ocorrente  no poeta norte-americano E. E. Cummings (1894-1962)). Neste sentido, cabe um exemplo de Luiz Filho no poema de título #LiçãoDeLínguasEmLesbos, do qual citarei apenas uma parte inicial:

#EmPênisSêmenDuro
#EEsseSeuPúbisEuchulo-O
#EBeijo-ONumLugarComum
#EEssesSeusLábiosEngulo-Os
( ...) 

   Com referência a modos renovadores e experimentalistas de fatura poética, no Brasil, poderia pensar em Manuel Bandeira (1886-1968) pela versatilidade de transformar temas apóeticos em grandeza poética. E, em certos modos de inventividade, em Da Costa e Silva, no poema “À margem de um pergaminho” e no conjunto de poemas de título “Poemas à maneira de”.
    Na segunda parte do livro, o núcleo temático imbrica temas socais e situações da experiência da comunicação virtual, cuja base é o mundo cibernético, que, embora fazendo parte da vida do autor, é ao mesmo tempo   material para fazer dele objeto de crítica desabrida. Por isso, usa e abusa da terminologia virtual. Há uma profusão de termos da informática percorrendo praticamente a obra inteira. Ao acaso, veja-se o poema “Assalto à mão teclada” (p.93) percorrendo toda a extensão da segunda parte. Esse vetor tem que ser levado em alta conta na interpretação de sua poética tipificada no livro: 

Com a tela em coberta toda
por um tecido de códigos,
cobrindo o rosto de propósito,
um hacker le-assaltou agora,
há segundos atrás num chat,
quando le-apontou um mouse velho
e levou do bolso do poeta o quanto
ele teclou texto em sua conta.
- Copylantra!

   Os temas atingem uma multiplicidade de segmentos  da sociedade, sobretudo urbana: políticos, questão indígena, capitalismo, indivíduos desonestos, meio-ambiente,  sexo,  amor virtual, miséria, fome, publicidade  enganosa, redes sociais, a poética, a linguagem etc. Em síntese,  Luiz Filho parece querer abarcar todos cantos do espaço sem fronteiras e os seus versos   cáusticos pululam aqui e ali  numa  acumulação  de nomes  literários,  de figuras  universais, de lugares e de    situações  múltiplas  da existência.
    Não é numa simples resenha  o lugar ideal  de abarcar  os diversos   segmentos linguísticos e temáticos do livro, todo ele  ubíquo,  multifocal, literariamente atemporal, combinando modos de vida e de  pensar plurais, num exercício de composição poemática que, do solene e do dessacralizado, da abundância escatológica  sem arestas nem preconceitos, sem receios de melindrar as hipocrisias das convenções sócias   oportunistas para uso externo, escolhe sua matéria  poética feita do bem e do mal,  do feio do belo, da comédia e da tragédia.
    Recolhendo a diversidade da condição humana até onde for possível   e mediante recursos vários, até não se furtando ao trabalho de aproveitamento de tudo que, em termos tradicionais, não é considerado digno de matéria poética, está certo de que, no terreno da arte, não pode haver um discurso único, mas vias multifárias de transformar a vida e tudo que possa haver no mundo em arte, anulando as interdições como formas de liberdade de linguagem e formas desafiadoras   do lugar-comum.
    Se sofremos com o excesso de referências e da retórica no estilo do poeta, levando-o a um hermetismo que pode afastar leitores menos afeitos ao fazer poético da pós-modernidade, ganhamos igualmente em termos de novas maneiras de manifestação poética da linguagem e pela linguagem. Tanta consciência o autor tem dessa quebra de normatividade de elaboração poética (trocadilhos, inversões sintagmáticas e verdadeiros torneios frasais que se aproximam do nonsense, dos jogos engenhosos de frases, provérbios etc ), que, no segundo livro, Onde Humano, ele oferece ao leitor, no final do livro, “notas numeradas” e “notas avulsas”, onde se elucidam alusões a autores, expressões linguísticas lexicais antigas e modernas e regionalismos brasileiros. Já em Das Bocadas Infernéticas, ele deixa a tarefa de garimpagem e de decifrações ao leitor avisado ou desavisado.
     É bem provável que, mais tarde, passada essa fase experimentalista,  o poeta, como o fez um Ferreira Gullar na fase inicial de sua poesia,  retome o lado mais adequado ao lirismo  da poesia  do futuro, com maior discursividade embora não se  desfazendo de todo do traço  da imprevisibilidade que é fruir o poético ainda que  atravessado pela  apreensão da não-totalidade do  discurso poético de nossos dias, cada vez mais tão pleno de referências alusivas - já  há  tempos  profetizadas pelo crítico I. A. Richards (1893-1979) - e, muitas vezes, impenetráveis. Quiçá seja isso o que torna a poesia um gênero permanente, campo privilegiado da sensibilidade e da beleza.    


Um comentário:

JAIRCLOPES disse...

Poeta com vasta pertinácia
De justificadas apologéticas
Obra de fôlego e audácia
Das Bocadas Infernéticas.