sexta-feira, 15 de abril de 2011

DE LÁ DE PERNAMBUCO

A partir deste ano, procurarei, com mais intensidade, postar textos importantes (não que os meus não no-sejam!) para a cultura piauiense e, por extensão, para a brasileira, a mundial. Textos mundanos, laicos, científicos, populares, artísticos, o diabo-a-quatro (ou os deuses-de-quatro!). E, para iniciar essa“prestação de serviço”, postarei um texto que remete à referência ao Piauí mais conhecida (?) no Brasil, a famigerada quadrinha: “O meu boi morreu!/ Que será de mim?/ Manda buscar outro?/ Lá no Piauí” (esse negócio de “ó maninha” foi verso inventado no teatro de revista?).


Pois bem, essa quadrinha tão cantada Brasil afora está dentro de um cavalo-marinho pernambucano. Para quem não conhece, o cavalo-marinho é uma versão pernambucana do bumba-meu-boi; nele, há música vocal, dança, cenas dramáticas, ação, poesia improvisada, música instrumental, máscaras e fantasias. “O enredo do Cavalo-marinho concentra-se em torno do Capitão, um proprietário rural que tinha deixado suas terras sob o controle de Mateus e Sebastião, dois vaqueiros. O Capitão deseja celebrar a volta dele às suas terras, mas, os vaqueiros não deixam. O Capitão manda um Soldado tirar a licença à força, e ele consegue, após muita confusão cômica e pancadas altas, mas, sem dor, das bexigas de boi que o Mateus e o Sebastião usam como armas e instrumentos musicais” (http://www.overmundo.com.br/.).


O Texto que você vai ler, a seguir, foi coletado por Sílvio Romero e publicado no livro Cantos Populares do Brasil. Para esse estudioso, esse reisado é datado do século XVIII; já, para Pereira da Costa, ele é do final do século XVII. De uma ou de outra data, o que esse texto traz de importante é que nele há a primeira referência ao Piauí como “terra de gado”, vinda de outro canto do país (com o trocadilho mesmo, pois é cavalo-marinho e bumba-meu-boi!). Vamos ao texto original:



REISADO DO CAVALO MARINHO E DO BUMBA-MEU-BOI*




CENA I
(O Cavalo marinho a dançar e o Coro)
Coro:
Cavalo-marinho
Vem se apresentar,
A pedir licença
Para dançar.
Cavalo-marinho,
Por tua atenção
Faz uma mesura
A seu capitão.
Cavalo-marinho
Dança muito bem;
Pode-se chamar
Maricas meu bem.
Cavalo-marinho
Dança bem baiano;
Bem parece ser
Um pernambucano.
Cavalo-marinho
Vai para a escola
Aprender a ler
E a tocar viola.
Cavalo-marinho
Sabe conviver;
Dança o teu balanço
Que eu quero ver.
Cavalo-marinho,
Dança no terreiro;
Que o dono da casa
Tem muito dinheiro.
Cavalo marinho,
Dança na calçada;
Que o dono da casa
Tem galinha assada.
Cavalo-marinho,
Você já dançou:
Mas porém lá vai,
Tome que eu lhe dou.
Cavalo-marinho,
Vamo-nos embora;
Faze uma mesura
À tua senhora.
Cavalo-marinho,
Por tua mercê,
Manda vir o boi
Para o povo ver.


CENA II
(O Amo, o Arlequim, o Mateus, o Boi, o Coro, o Sebastião e o Fidelis.)


Amo:
O' arlequim,
O' pecados meus,
Vai ,chamar Fidelis,
E também Mateus.
O' meu arlequim.
Vai chamar Mateus,
Venha com o boi
E os companheiros seus.


Arlequim:
O' Mateus, vem cá.
Sinhô está chamando;
Traze o teu boi,
E venhas dançando.
Só achei o Mateus,
Não achei Fidelis;
Bem se diz que negro
Não tem dó da pele.


Amo:
O' Mateus, cadê o boi?


Mateus:
Olá, olá, olá,
Boio tá p 'ra cá,
Boio tá p'ra cá. . .
Se minha boio chegou
Eu tá aqui;
E que foi esse
Pur aqui?
O' meu xinhô,
Cadê-lo o Bastião,
Cadê-Ia- o Fidere?
Para onde fôro?
Venham cá vocês (para o coro)
E também o boio.


Coro:
Vem, meu boi lavrado,
Vem fazer bravura,
Vem dançar bonito,
Vem fazer mesura,
Vem fazer mistérios,
Vem fazer beleza;
Vem mostrar o que sabes
Pela natureza.
Vem dançar, meu boi,
Brinca no terreiro;
Que o dono da casa
Tem muito dinheiro.
Este boi bonito
Não deve morrer;
Porque só nasceu
Para conviver.


Mateus:
O' boio, dare de banda,
Xipaia esse gente,
Dare pra trage,
E dare pra frente. . .
Vem mai pra baxo,
Roxando no chão
E dá no pai Fidere,
Xipanta Bastião. . .
Vem pra meu banda
Bem difacarinha,
Vai metendo a testa
No Cavalo-marinha.
Ô, ô, meu boio,
Desce desse casa,
Dança bem bonito
No meio da praça. ..
Toca esse viola,
Pondo bem miúdo;
Minha boio sabe
Dançá bem graúdo.


Coro:
Toca bem esta viola
No baiano gemedô,
Que o Mateus e o Fidelis
São dois cabras dançadô.
No passo da juriti,
Tico-tico, rouxinó,
Se Fidelis dança bem,
O Mateus dança milhó.
O tocadô da viola
Tem os olhos muito esperto,
O som da sua viola
Parece-me um céu aberto.
Eu quero boa viola
Para fazer toda a festa,
O bom pandeiro concerta
O samba na floresta.
Eu fui dos que nasci
Na maré dos caranguejos,
Quanto mais carinhos faço,
Mais desprezado me vejo.
Como sou filho do povo,
Tenho o dom da natureza;
Não sou feliz, mas bem passo
Com toda a minha pobreza.
Dança o boi, dança o Mateus,
Dançam todos os vaqueiros;
Dançam que hoje nós temos
Grande festa no terreiro.


Mateus:
Para, para, para!
Quero dizer um recado:
- Boi dançou, dançou;
Mai agora tá deitado!


Sebastião:
Ah! pracêro meu,
Boio de sinhô morreu. . .


Mateus:
A t'embora, bobo,
O boio divertiu muito,
Agora ficou cansado;
Toca bico do ferrão,
Pra tu vê como arrevira
E te dá no chão.


CENA III
(Os mesmos, o Doutor, Capitão do mato, D. Frigideira, Catarina, e o Padre; caído o boi, foge F'ielelis, chama-se um capitão do campo para o prender e um Doutor para curar o Boi; aparece um Padre para fazer o casamento ele Catarina.)


Mateus:
Minha boi morreu!
Que será de mim?
Manda buscá outro
Lá no Piauí.


Amo:
O' Mateus,cadê o boi?


Mateus:
Sinhô, O boi morreu. . .


(Sai o Mateus espancado pelo amo)


Amo:
Ó Mateus vá chamar
O doutor para curar
O meu rico boi:
Quero saber do Fidelis
Para onde foi.
Ó Sebastião, vá a toda a pressa,
Chame o Capitão do mato,
Dê as providência,
Que traga o Fidelis
Na minha presência.


(Chegando o Doutor, ajusta com o Amo a cura do Boi; chegam D. Frigideira e Catanrina, e Sebastião quer casar com esta; aparece o Padre para este fim.)


Padre:
Quem me ver estar dançando
Não julgue que estou louco;
Não sou padre, não sou nada;
Singular sou como os outros.


Coro:
Ó chente, que quer dizer
Um padre nesta função?
É sinal de casamento,
Ou alguma confissão.


Padre:
Bula hem na prima,
Bata no bordão;
Arribo a função,
Não se acabe não.


Doutor (para Mateus):
Ó negro, teu desaforo
Já chegou aonde foi;
Quando tu me chamares
É pra gente e não pra boi.


Mateus:
Ah! uê, ah! uê!
Troco miúdo
Tu vai recebê.


(O Capitão campo dá com o Fidelis e vai prendê-lo.)


Capitão:
Eu te atiro, negro,
Eu te amarro, ladrão,
Eu te acabo, cão.


(O Fidelis vai sobre o Capitão e o amarra.)


Coro:
Capitão de campo,
Veja que o mundo virou,
Foi ao mato pegar negro,
Mas o negro lhe amarrou.


Capitão:
Sou valente afamado,
Como eu pode não haver;
Qualquer susto que me fazem
Logo me ponho a correr.


(Finda-se aqui a função saindo todos a cantar.)




*(Obtido em http://pt.wikisource.org/wiki/reisadodocavalomarinhoedobumba-meu-boi, acesso em 15/05/09.)

Lido isso, não há que se-inventar alguma história de que essa quadrinha foi criada por fulano de tal quando era deputado e foi informado da morte de seu boi predileto ou mesmo que se-ecoar essa quadrinha com um quinto (?!) verso (o tal de "Ó maninha!"). Estou com Romero e Pereira da Costa: a referência original é o cavalo-marinho pernambucano e nele aparece uma quadra. Se é do século XVII ou do XVIII, depois se-vê.  O certo é que a quadra famosa aparece com a variação do falar caipira/sertanejo de Mateus; por isso, a "desconcordância" no primeiro verso, "Minha boi morreu!", que, para manter a redondilha menor, substituímos hoje por "O meu boi morreu!".

Foram esses versos que chamaram a atenção dos Andrade, os modernistas famosos (Mário e Oswald)para o nosso sumidíssimo Piauí. Aquele, nos seus estudos acerca do folclore brasileiro; este, como referência ao nosso estado na capa de seu livro "Primeiro Caderno do Aluno de Poesia", obra e autores que tanto foram objetos de meus desejos e estudos. Portanto, quando Mateus canta hoje estes versos, eu respondo em coro uno:

O meu boi tá vivo!
Que serão para mim!
Manda chamá todos
Cá pro Piauí!