sábado, 26 de março de 2011

AQUI DA POESIA DO BRASIL

Após estes dois poemas de Mário de Andrade, apresento-lhes três poemas meus que dialogam um pouco com esse meu mestre de sempres!


EU SOU TREZENTOS


Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
As sensações renascem de si mesmas sem repouso,
Ôh espelhos, ôh Pireneus! Ôh caiçaras!
Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!

Abraço no meu leito as milhores palavras,
E os suspiros que dou são violinos alheios;
Eu piso a terra como quem descobre a furto
Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos!

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
Mas um dia afinal eu toparei comigo…
Tenhamos paciência, andorinhas curtas,
Só o esquecimento é que condensa,
E então minha alma servirá de abrigo.

(Mário de Andrade)


DOIS POEMAS ACREANOS
a Ronald de Carvalho

I

DESCOBRIMENTO

Abancado à escrivaninha em São Paulo
Na minha casa da rua Lopes Chaves
De sopetão senti um friúme por dentro.
Fiquei trêmulo, muito comovido
Com o livro palerma olhando pra mim.

Não vê que me lembrei que lá no norte, meu Deus! muito longe de mim
Na escuridão ativa da noite que caiu
Um homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos,
Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,
Faz pouco se deitou, está dormindo.

Esse homem é brasileiro que nem eu.

II

ACALANTO DO SERINGUEIRO

Seringueiro brasileiro,
Na escureza da floresta
Seringueiro, dorme.
Ponteando o amor eu forcejo
Pra cantar uma cantiga
Que faça você dormir.
Que dificuldade enorme!
Quero cantar e não posso,
Quero sentir e não sinto
A palavra brasileira
Que faça você dormir...
Seringueiro, dorme...

Como será a escureza
Desse mato-virgem do Acre?
Como serão os aromas
A macieza ou a aspereza
Desse chão que é também meu?
Que miséria! Eu não escuto
A nota do uirapuru!...
Tenho de ver por tabela,
Sentir pelo que me contam,
Você, seringueiro do Acre,
Brasileiro que nem eu.
Na escureza da floresta
Seringueiro, dorme.

Seringueiro, seringueiro,
Queira enxergar você...
Apalpar você dormindo,
Mansamente, não se assuste,
Afastando esse cabelo
Que escorreu na sua testa.
Alguma coisas eu sei...
Troncudo você não é.
Baixinho, desmerecido,
Pálido, Nossa Senhora!
Parece que nem tem sangue.
Porém cabra resistente
Está ali. Sei que não é
Bonito nem elegante...
Macambúzio, pouca fala,.
Não boxa, não veste roupa
De palm-beach... Enfim não faz
Um desperdício de coisas
Que dão conforto e alegria.

Mas porém é brasileiro,
Brasileiro que nem eu...
Fomos nós dois que botamos
Pra fora Pedro II...
Somos nós dois que devemos
Até os olhos da cara
Pra esses banqueiros de Londres...
Trabalhar nós trabalhamos
Porém pra comprar as pérolas
Do pescocinho da moça
Do deputado Fulano.
Companheiro, dorme!
Porém nunca nos olhamos
Nem ouvimos e nem nunca
Nos ouviremos jamais...
Não sabemos nada um do outro,
Não nos veremos jamais!

Seringueiro, eu não sei nada!
E no entanto estou rodeado
Dum despotismo de livros,
Estes mumbavas que vivem
Chupitando vagarentos
O meu dinheiro o meu sangue
E não dão gosto de amor...
Me sinto bem solitário
No mutirão de sabença
Da minha casa, amolado
Por tantos livros geniais,
"Sagrados" como se diz...
E não sinto os meus patrícios!
E não sinto os meus gaúchos!
Seringueiro dorme ...
E não sinto os seringueiros
Que amo de amor infeliz...

Nem você pode pensar
Que algum outro brasileiro
Que seja poeta no sul
Ande se preocupando
Com o seringueiro dormindo,
Desejando pro que dorme
O bem da felicidade...
Essas coisas pra você
Devem ser indiferentes,
Duma indiferença enorme...
Porém eu sou seu amigo
E quero ver si consigo
Não passar na sua vida
Numa indiferença enorme.
Meu desejo e pensamento
(...numa indiferença enorme...)
Ronda sob as seringueiras
(...numa indiferença enorme...)
Num amor-de-amigo enorme...

Seringueiro, dorme!
Num amor-de-amigo enorme
Brasileiro, dorme!
Brasileiro, dorme.
Num amor-de-amigo enorme
Brasileiro, dorme.

Brasileiro, dorme,
Brasileiro... dorme...

Brasileiro... dorme...

(Mário de Andrade. Clan do Jabuti, 1927.)


cantiga da amiga lírica*

ah! minha amiga
da Galiza tocante vens
não em naus carracas galeões
masporém via vida linguagens genes
e os ais que guarda teu nome bem aí
desecoam cantigas também aqui (lá no Piauí!)
onde seguros os portos se-contracolonizam
com o legado das cortes de longe
das ondas do mar de Vigo
ou de ulissiponense gente

ai! minha amiga
 re-volto mar música poema
      onde naufragaram as perguntas
      que cantando gaiado fizeste – e tanto!
      frente aos humanos sentidos a natureza
      não nos-entende (isso é mesmo coisa das gentes!)
      não perguntes pois ao verde pinho nem às ondas
      que não se-ocupam de nenhuma música-poema
      aonde inscrito anda este teu amigo lírico
      que vivo aqui cantando – e sempre-vivo!



(De Teresina a Timon, a passar por Vigo ou Lisboa.)


*A Laís, uma estudante minha amiga, bem-vinda de Galiza lírica.


mesa de bar do Rio (diálogo do poeta-mano com os manos do poeta)**

ó ali a nave louca
lá no Piauí!

– ela voa & diz loa
de mãos dadas com
o torto... um anjo!

– meus deuses!!!
que será de nós?

– eles já foram... mano
calma! esfria a cabeça
que o bode na brasa
vem depois do boi
e nem assou... espera!
morou?

hem-hém!


(Na última vinda do nauta da nave a Teresina.)

**Em memória de Wally, viajante-mente-sailor-moon, neste mundo sem Salomão com seus cânticos.



ondeAndradeandaretooutropoetatorto

brasileiro-acorde
te-acordo por não ter-te-visto ali
lá no Piauí!: lar do primitivo
dos humanos nossos de ondes passados
(né Niède?1  né Chovenágua?2)

e te-acordo por não ter contigo
café bebido e bebida cajuína cachaça vinho
– tragam pra mim um coquetel paulista:
mar + rio... tanto mar tanto rio... please!
e bebamos ao possível poema vivo
e a nota (não conta) cante o tom plurilíngue
e a harmonia ao som enxame!

masporém brasileiro-ser-guerreiro
num ringue acre pronta pra nos-matar
a escureza está – também a virgem mata! –
tangendo o ataúde o cantocalar
e nós cantamos este canto miscigenado:
tupi and not tupi
globe theatre ou municipal aqui
nesse chão que é também meu
brasileiro que nem eu!

e sem muito papo mansamente em porém
cena resistência – manosabença
pois nos jamais veremos entanto
te-sinto – meu poeta nativo – onde
este eu brasileiro que nem tu anda
ruminando outro brasileiro dormido
a le-desejarcuma enorme diferença
de crença e de desejo e de pensamento – o bem
da humanidade: aos bondes! de carrada!

e ainda brasileiro amigo: é bom
ter passado in tua vida in ronda paulistana
si rota policio circandandobliquamente
in estradas Andrades andadas extratos
de alguéns que nem eu & tu & ele
brasileiros que nem tudo!



(Em São Paulo, ante a entrada, na calçada do teatro municipal.)

_______________________________________
1. Niéde Guidon. Pesquisadora paulista responsável pela equipe que descobriu os sítios arquelógicos na Serra da Capivara. Esses estudos, realizados a partir da descoberta de inscrições rupestres e fósseis na região de São Raimundo Nonato, concluíram que o primeiro homem americano teria habitado o sertão piauiense, há cerca de 60 mil anos, contrariando outras teses sobre o início do povoamento das Américas.
2. Chovenágua. Apelido pelo qual era conhecido por populares, em Teresina, o cientista austríaco Ludwig Schwennhagen. Essa alcunha adveio da dificuldade de pronúncia do seu sobrenome. Chovenágua foi professor do Liceu Piauiense e escreveu um importantíssimo tratado histórico, Os Fenícios no Brasil: Antiga História do Brasil - de 1100 a.C. a 1500 d.C., publicado pela Companhia Editora do Piauí, em Teresina, no ano de 1928, no qual sustenta a tese de que esse povo de vocação marítima esteve no Piauí, que Sete Cidades seria um centro de confluência da nação Tupi, seus descendentes diretos e dos Cários, e que o tupi é uma língua do ramo pelasgo.